O espectro da insubmissão fiscal
Posted on Febreiro 28, 2013 by grenlandia
Publicado en FerramentaZine en Maio de 2012.- De entre as mais conhecidas fotografias do incêndio social ateniense, sobressai uma curiosa imagem: a de políticos de esquerda e sindicalistas dando palmadas nas costas dos activistas de Den Plirono (”Eu não pago”), movimento nascido contra o pagamento de portagens na auto-estrada de Afidnes, a norte de Atenas, decretado pelo governo para antecipar às construtoras o dinheiro de futuros empreendimentos. Os activistas rejeitam o abraço envenenado de quem consideram fazer parte do mesmo sistema impositor, que eles cifram como impostor, sem aceitar nuances semânticas. Alentado pela crise e a grave deterioração moral da sociedade grega, o movimento atingiu, desde 2009, proporções impensáveis, e, atrás da recusa a pagar as portagens, seguiram-se acções contra as taxas nos transportes públicos e na assistência sanitária, contra o IVA, ou contra o imposto sobre as propriedades imobiliárias colectado a través da factura eléctrica. Entretanto, líderes mediáticos da direita confrontam a mal sucedida fotografia dos seus parceiros na banda esquerda do arco parlamentar com uma defesa fechada do sistema tributário e a necessária sustentabilidade do estado, numa paradoxal troca de princípios entre neo-liberais e social-democratas, todos eles comprometidos no processo que levou à ruína da república.Sem dúvida, a crise grega está a evidenciar o cinismo das rotinas ideológicas que determinam o jogo político nas democracias ocidentais desde a Segunda Guerra Mundial. Neste marco, a esquerda, lato sensu, leva a maior na desorientação e na incapacidade de readaptar as suas doutrinas fora das trincheiras ideológicas em que ainda permanece. A insubmissão fiscal, empregada historicamente por movimentos libertários e alternativos de variado signo contra a gestão dos recursos públicos em prol de políticas injustas ou moralmente reprováveis, é o novo espectro que percorre a Europa pela sua latitude sul. Movimentos semelhantes surgem em Espanha, Portugal ou Itália, significando o descontentamento das populações que vêem acrescentadas as cargas tributárias com o paralelo corte de direitos e serviços e a desafeição das elites políticas pelo bem comum, entregues a interesses alheios localizados nas ruas melhor blindadas do planeta.

Mas nem só no sul da Europa. Na própria Alemanha, filósofos como Peter Sloterdijk já provocaram escândalos na comunicação social defendendo a revolta fiscal contra a obrigatoriedade do sistema tributário, que ele qualifica de autêntica “cleptocracia estatal”. Na sua polémica de 2010 com Axel Honneth, pensador na órbita de Habermas, que o qualificou de sintoma preocupante da má saúde da actual cultura democrática por, presumivelmente, atacar o princípio da redistribuição da riqueza, totem da social-democracia alemã, Sloterdijk defendeu-se alegando a incapacidade da velha esquerda para a troca civilizada de argumentos colocando a questão fulcral da economia contemporânea, não no tradicional antagonismo entre capital e trabalho, senão na divisão entre credores e devedores.

A provocação de Sloterdijk e da sua ética da dádiva — formulada em Cólera e Tempo, obra certamente terapêutica para cabeças orientadas à esquerda —, que visa estimular a responsabilidade e o orgulho dos cidadãos em contribuir voluntariamente para o bem comum, tem entre outras a virtude de questionar a ideia do indivíduo como ser egoísta e cobiçoso, produto duma sociedade de consumo atroz e vulgar que o suposto humanismo social-democrata não deixa de alimentar com a sua concepção absolutista do Estado do Bem-estar. Neste ponto o alemão dá-se as mãos com outro dos polemistas mais bravos do pensamento europeu, o esloveno Slavoj Žižek, crítico feroz do multiculturalismo e a falsa consciência da esquerda progressista. Ambos consideram, de ópticas à partida distantes, que o mundo construído sobre o endividamento e o creditismo, com raízes ideológicas no projecto ilustrado do Século das Luzes, chegou ao seu fim com a exaltação sem freio do individualismo e o esvaziamento total do comum, que já não é possível articular com sentido em sociedades entregues ao economicismo e ao consumo de massas, onde a cultura política aparece estancada e por isso mesmo inócua. Devolver ao ser humano o sentido da grandeza e da generosidade seria, nesta linha de pensamento, a maneira de relançar a sociedade civil e avançar para além da crise. Porque afinal, e diante de corrupções endémicas, reformas laborais absurdas e a vaga de cortes que se impõe por todo o lado, a pergunta é simples. Somos obrigados a contribuir para quê e para quem?

Talvez desde a pícara cultura latina do sul possam parecer ditos postulados de um utopismo jovialmente anti-social, impróprio da seriedade teutónica que quer controlar os nossos orçamentos e impor-nos a austeridade calvinista no controlo das contas públicas, — só para melhor lhes pagar os juros, é claro —, mas percebendo que estas ideias nascem no seio dessa mesma sociedade, a última a querer perder alguma coisa no actual contexto da crise continental, merece toda a atenção.

Sonhar com uma esquerda que perca o medo aos próprios dogmas e comece a confiar na capacidade das pessoas para se comprometer com a comunidade sem necessidade de proibições e restrições de todo o tipo, que abrangem desde a gestão dos corpos e dos espíritos — não fumem aqui, não bebam lá, não forniquem acolá, não pensem além, não falem assim, e acima de tudo, paguem por não fazer tudo isso — até uma regulamentação do espaço público insuportável que exclui a negociação directa dos conflitos entre os indivíduos e ulteriormente lhes impõe um rol infantil e passivo; esse, é talvez um sonho que muitos estão dispostos a sonhar.

Ninguém duvida que o estado tem a responsabilidade de garantir a justiça social, (oxalá…), mas diante da monstruosidade atingida pelo aparelho burocrático e a democracia de partidos, para não falar da função dos sindicatos nesta festa estrutural, e o papel cada vez mais ínfimo da comunidade na gestão do bem comum, é hora talvez da esquerda encetar caminhos além de si própria. Por enquanto, a direita e as suas idolatrias neo-liberais parecem sentir-se à vontade neste reino da confusão e da precariedade intelectual da política. A catástrofe é real, dizem os gregos, mas não joga necessariamente em prol da esquerda. A racionalidade, diz algum alemão, talvez sim.

Coisas nas que pensar…